quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Falsos profetas



Trôpego, balança pela rua em busca do carro que já nem sabe exatamente onde deixara.

Cabeça enevoada, com as cãs levemente escondidas num tom azulado disforme, revoltadas contra o gel que ele insistira em usar (afinal, feriado é dia de aparecer bem bonito na foto!), espetando uma ponta aqui, outra ali.

Aquilo que bebera, definitivamente, não tinha sido cerveja. Certamente era “mijo de vaca”, que o butequeiro lazarento havia injetado na garrafa e deixado congelar no freezer, para enrolar os mais crédulos.

Como ele – que sempre se tivera em conta de intelectual e homem de fé simultaneamente (coisa rara, convenhamos…) – pode cair em tal esparrela?

Como se deixara enganar tão rasteiramente?

Manquitolando por aqui e por ali, em busca do tal carro, se deixa perguntar aquilo que não tem coragem de pronunciar nem mesmo diante do espelho.

Como foi, afinal de contas, que se metera em tão profundo buraco?

Como, depois de tantos anos esbravejando em defesa da ética, da honra dos homens públicos, da contribuição espontânea dos políticos, balançando bandeiras vermelhas e subindo na carroceria de caminhões para proferir discursos inflamados, transformara-se num ser gaguejante, que perdia a noção do tempo, enquanto procurava as palavras com as quais sempre dissera conviver intimamente?

Cambaleante, zonzo, a rodopiar em busca de um carro que parece ter-se tornado invisível, continua a embolar pensamentos e questionamentos, pragas e desculpas.

Fora necessário! Imagine! Não podia se furtar a colaborar com o amigo de longa data. Não poderia, jamais!, deixar de se fazer de capacho e afagar o ego de quem lhe estendia a mão, acenando com a possibilidade de um futuro próximo e bem mais estável. Era questão de poucos anos. Valia a pena!

Passos incertos, pés arrastados em sentidos opostos, o equilíbrio evaporando junto com o tal “mijo de vaca”, busca encontrar o carro e as palavras que havia riscado de seu dicionário – e conceitos e dogmas e a fé e os ideiais que riscara de sua vida.

Escorando-se aqui e ali, depara com a vitrine de uma loja. Seria só mais uma, das inúmeras que encontrara ao longo do sinuoso caminho que fizera. Mas não é…

Algo a transforma em espelho.

Olhando para ele, vê-se refletido no vidro enviezado. O que distorce a sua imagem: a visão bêbada ou o vidro colocado em ângulo que ele não sabia identificar? Ou seriam aqueles “poucos anos” que haviam deturpado tanto sua alma?

Aliás… onde está sua alma? Onde está sua honra? Onde está a sua intimidade com as palavras? Onde terá ido parar o humor sagaz que, pensava ele, sempre tivera? Em que parte do caminho ele errara a encruzilhada e enveredara pela torpeza?

Zonzo, lembra-se de que o carro está perto da igreja. Mas para que lado fica mesmo a igreja?

Ah, sim! Por ali. Mais uns passos e certamente avistará o famigerado carro invisível. Encontrará o tesouro capaz de levá-lo ao lar.

Pronto! Eis que à sua frente surge a igreja. Uma leve e instável vontade de entrar e falar com os santos passa-lhe pelo coração. Mas que santo quererá ouvi-lo à essa hora e em tal estado?

Talvez alguma alma caridosa, que aceitasse sentar-se ao confessionário e simplesmente o deixasse falar. Quem sabe?

Não. Melhor não. Não haveria como explicar tantas voltas que a vida dera e tantas derrapagens que ele mesmo consumara.

Ah! Pronto! Eis o carro fujão!

Mãos trêmulas, abre a porta, ajeita-se no banco do motorista e, num lampejo de consciência, lembra-se de ajustar o cinto de segurança. Afinal, para que levar multa de bobeira?

Partida dada (ainda bem que não havia ninguém atrapalhando a saída, que não precisava fazer manobra), um súbito cansaço se abate sobre ele.

Mergulhado na névoa do tal “mijo de vaca”, ainda pensa: naquele buteco eu não piso mais.

Depois, um mergulho sem fim no mundo dos santos, confissões, pecados, arrependimentos e questionamentos.

Uma profusão de penas e atenuantes, alternando-se no cérebro entorpecido. Um pecado aqui, uma desculpa ali; um erro aqui, uma justificativa acolá. E por aí deixa-se levar.

Até que a mente lhe parece suficientemente justificada diante de si mesma, desnuda, mas com a nudez disfarçada pela névoa do “mijo de vaca”.

As partes pudendas escondidas de si mesmo, sem reconhecer-se no retrovisor, pode justicar sua queda moral e sua decadência física para o espelho.

“A culpa não é minha. Tudo o que fiz foi pelo bem do Povo! Fui seduzido pelos falsos profetas, que me juraram que respeitariam a vontade do Povo. Juntei-me a eles porque acreditei no que me disseram. A culpa é deles! Mais um ano nisso e vou para casa, calçar os chinelos e me reencontrar com as palavras. Aquelas que abandonei para juntar-me aos lambe-botas, aos puxa-sacos, aos subservientes e servis. Vou juntar meus cacos e colar minha honra, minha dignidade. Aí, morrerei em paz”.

E, assim pensando, deu-se conta que o carro chegara em casa. Pronto. Podia estirar-se no conhecido colchão e deixar o corpo corroído repousar em paz.

Pelo menos até que fosse novamente chamado pelos falsos profetas para que pegasse da pena e propalasse mais inverdades. Afinal, foi nisso que ele se transformou: um divulgador de mentiras, um fazedor de mágicas, um ilusionista.

Tudo bem! Até que o próximo buteco lhe ofereça “mijo de vaca” ao invés de cerveja….