segunda-feira, 21 de maio de 2012

Intervalo das músicas


Vanessa dos Santos

Passos pesados e apressados pelas ruas de seu bairro. Pisava em cheio em cimas das poças dágua. Olhava para os lados desconfiada. Cachorros uivavam na noite chuvosa sem lua cheia. Sem guarda chuva em mãos, acelerava ainda mais para fugir dos parcos e gelados pingos de água que teimavam em cair sob suas costas nuas. Sua mente e corpo cansados ansiavam por uma ducha quente e sua cama macia. Só desejava dormir para outro dia de trabalho e estudo.

Ouvia música no último volume. Na FM tocava o sucesso do momento mas também não era assimilado. Somente o barulho. Sua cabeça só focava o fato de que em uma música e meia estaria em casa. Tomaria banho, veria alguma bobagem na tv e enfrentaria os trocentos trabalhos da faculdade.

Fim de música. Chega finalmente ao seu prédio. Pega a chave na mochila rapidamente. Dá meia volta na fechadura. No intervalo das músicas ouve um retumbante “VAI MORRER VADIA!”

Ao ouvir tais palavras, um arrepio perpassa por seu corpo. Sim, agora ela percebe que os clichês são reais. Tão reais que sua vida passa diante de seus olhos. As primeiras amizades valiosas, as primeiras gargalhadas, a primeira viagem em família,a primeira viagem com os amigos. O primeiro nascer do sol visto. O primeiro dez e o primeiro zero na escola. A primeira vez que passou no vestibular. A primeira vez que disse "eu te amo" e não ouviu de volta. A primeira decepção amorosa. O primeiro beijo, o primeiro namorado e a primeira transa. O primeiro orgasmo. O primeiro cigarro. A primeira ressaca.

Tudo é revivido.Intensamente revivido.

Vinte e cinco anos duraram cinco segundos. Rapidamente Kátia é rodeada por vizinhos, mãe e pai. Quase não da pra reconhecê-la com a poça de sangue à sua volta. Sente as mãos de seu pai sobre a sua transmitindo segurança, esperança e conforto. Vê sua mãe desesperada ligando para a ambulância sem tirar os olhos dos seus. Talvez por medo de fechar sem promessa de abrir novamente.

Ela os fecha para sua última reflexão. Não sobre o que não se tornará. Não sobre os planos frustrados pela morte inesperada. E muito menos sobre o medo do desconhecido. Nesse momento percebe que os clichês não se concretizaram. Seus pensamentos são sobre a última ressaca. A última tragada. O último orgasmo. A última transa. O último namorado. O último beijo. A última decepção amorosa. A última vez que disse eu te amo. O último dez. O último zero. A última viagem com a família. A última viagem com os amigos. A última gargalhada. A última amizade valorosa. O último sorriso.

Assim como Machado de Assis em seus últimos momentos pensa consigo: " A vida é boa".

E lá se foi seu último suspiro.