sábado, 15 de janeiro de 2011

Mad Men, Mad Americans


Texto de Sheron Neves

“Quem é Don Draper?”, pergunta o repórter da revista Advertising Age, na cena de abertura da 4ª temporada de Mad Men. Esta é uma pergunta que a audiência aguarda resposta desde julho de 2007, quando a série de TV estreou nos EUA.

O personagem de Don Draper (vivido por Jon Hamm) é um enigma, não só para o público como para ele mesmo, e sua tortuosa jornada de autoconhecimento, paralela à jornada da própria sociedade americana, é um dos elementos que torna Mad Men um dos mais ambiciosos e inteligentes projetos da história da televisão.

Favorita da crítica e premiada com 13 Emmys e 4 Golden Globes, a série do canal a cabo AMC já e distribuída para mais de 20 países e vem lentamente alcançando um número respeitável de fãs ao redor do mundo.

Mad Men é ambientada no glamoroso mundo da propaganda da Nova Iorque dos anos 1960. O título refere-se aos publicitários (em inglês “ad men”) da Madison Avenue, e é também um trocadilho com a palavra “mad”, que em inglês significa louco. A história começa na primavera de 1960, e somos apresentados a tipos ainda encaixotados dentro de padrões conformistas e machistas dos anos 1950. Estamos no período pré-Vietnã, pré-feminismo, pré-Prozac, e anos luz do politicamente correto. Como expectadores de um filme de suspense, nos deleitamos em ver os personagens serem surpreendidos pelo inevitável. Assim como Kennedy não consegue evitar a bala em novembro de 1963, os personagens não conseguem escapar do rolo compressor que está prestes a triturar seus valores, suas relações e sua própria identidade.

Trata-se de um complexo retrato da fantasia do sonho americano e do seu inevitável desmoronamento, habilmente representado na vinheta de abertura. Abertura que, conforme apontado pelo pesquisador Gary Edgerton (Old Dominion University), faz alusão não apenas a Um Corpo que Cai de Hitchcock, mas também a uma trágica imagem do inconsciente coletivo americano, a do homem desconhecido jogando-se do alto do World Trade Center durante os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.

A série lança um olhar cético sobre os anos 1960, explicitando o que usualmente é deixado de fora de dramatizações mais nostálgicas e românticas sobre a época. Trata-se de uma tendência recente, que pode ser observada em filmes como Educação, roteirizado por Nick Hornby, O Direito de Amar, de Tom Ford, Foi Apenas um Sonho, de Sam Mendes, e Um Homem Sério, dos irmãos Cohen. Nascidos entre 1957-65, e tendo vivenciado o período como crianças, estes diretores/roteiristas propõem a releitura de uma era nem tão dourada quanto gostaríamos de acreditar, através dos olhos contemporâneos do pós-11 de setembro.

No Brasil Mad Men pode ser vista na HBO, que em breve transmitirá a 4ª temporada. A série aqui conquista adeptos a passos mais lentos, e ainda está longe da popularidade alcançada na América e na Europa. Isto se deve em parte à demora no lançamento da 2ª temporada em DVD. Mas não é só isso. Uma das principais reclamações é seu ritmo lento. Contudo, uma edição mais acelerada não permitiria mostrar a complexidade e a desorientação dos personagens. Sua crise existencial pode às vezes ser mais bem expressa em longos silêncios do que em qualquer outro recurso de linguagem.

Imagem é tudo
No centro desta crise de identidade nacional está o protagonista, Don Draper, ele próprio uma mentira cuidadosamente bem construída. Ele não é quem diz ser. Ironicamente, seu trabalho é justamente vender o sonho americano. “Don é uma pessoa por dentro e outra completamente diferente por fora. Essa é a história da América”, explica seu idealizador, Matthew Weiner.

E esta é a história de todos nós. Não é por acaso que o público em 2010 se identifica com os personagens. Somos apenas suas versões pós-modernas, tentando fazer o melhor com o que o futuro nos joga a uma alarmante velocidade. Da mesma forma que nos reinventamos em perfis no Facebook, mascarando inseguranças atrás de avatares e belas fotos, a geração de Mad Men se protegia atrás de suas convicções, dos papéis pré-estabelecidos dos gêneros e da ilusão de perfeição. A diferença está apenas na quantidade de uísque, cigarros e tapinhas no bumbum das secretárias. No contexto da série, o machismo, o racismo e a homofobia são socialmente tolerados. Ninguém quer enxergar o ambíguo, o diferente. Assim como na publicidade da época, a ilusão de perfeição é o que conta.

Mulheres à beira de um ataque de nervos
As questões femininas são um tema constante, e a série foi apelidada de “a mais feminista da TV” pelo jornal Washington Post. Algumas cenas tão chocantes que não é de surpreender que na década seguinte as mulheres estivessem ateando fogo aos seus sutiãs.

Os arquétipos femininos e masculinos – e da família– são vistos através de uma lente de aumento. O mal causado pela fumaça dos cigarros (acesos incontáveis vezes durante cada episódio) talvez seja menos nocivo do que o dano emocional sofrido pelos personagens infantis. A falta de tato com que os pais transmitem valores fazem com que o público acima dos 40 anos enxergue um pouco de sua própria infância na tela. Mas agora é possível enxergar a insegurança atrás da rigidez destes pais.

Mad Men foi chamada pela crítica de “essencialmente freudiana”, e diz-se que Matthew Weiner exorciza seu complexo materno através do personagem de Betty Draper (January Jones), “a pior mãe da televisão” de acordo com alguns fóruns. Mas é difícil não sentir compaixão por essa mulher enclausurada numa vida aparentemente perfeita. Como a personagem April Wheeler em Foi Apenas Um Sonho, de Sam Mendes, a vida de casada é bem diferente do que ela esperava.

A vida no ambiente corporativo não é menos restrita. Os homens são geralmente filmados de baixo para cima, um enquadramento que passa a impressão de superioridade, e que simula o ponto de vista das secretárias, que estão num nível inferior, sentadas em suas mesas. Elas usualmente aparecem chorando no banheiro, um toque um tanto tragicômico que lembra o clássico Se Meu Apartamento Falasse de Billy Wilder, filme que também é usado como referência visual para o interior da agência de publicidade.

Já a jovem profissional Peggy Olson (Elizabeth Moss) possui mais alternativas, mas paga um preço alto por elas. Ela não tem as curvas da femme fatale Joan Holloway (Christina Hendricks), mas é talentosa e conquista espaço no setor de criação da agência, território até então dominado por homens. Porém quando pede ao chefe um aumento, alegando que sua secretária ganha quase o mesmo que ela, Don responde: -“Então arranje uma secretária mais barata.”


Maturidade do meio
São projetos como este que provam que a dramaturgia televisiva saiu da zona de conforto e vem passando por uma evolução na qualidade. Transformação liderada pela TV a cabo (especialmente pelo canal HBO), que por não possuir o mesmo compromisso com os níveis de audiência da TV aberta, pode ousar e oferecer aos roteiristas uma liberdade criativa semelhante à encontrada no cinema independente. O que aos poucos começa a influenciar a qualidade da TV como um todo (Lost e House são exemplos na TV aberta americana, assim como Som e Fúria, Capitu e Mandrake no Brasil).

Em Mad Men, o resultado desta liberdade é um trabalho onde temas sensíveis como a solidão no casamento, a fragilidade masculina e a busca de aprovação social são abordados de uma forma original. Crédito para os produtores, por provar que existe espaço para tramas psicologicamente densas na TV, e por confiar na capacidade do público de apreciar uma obra tão cheia de nuances. “Construa e eles virão”. Mesmo que lentamente.