quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Descaminho dos anjos


Rita Lavoyer

Quantos caminhos atravessam os nossos? De quantos nos desviamos, quando podemos? E quando não conseguimos tal feito, quem se atreve a apontar o anjo e o demônio numa relação de iguais, salvando um ou condenando outro?

A mão que apedreja é a mesma que tapa os olhos, quando o portador dela não quer ver o que é explícito, para evitar comprometimentos. Melhor, já que da boca sai o veneno do homem. Quer arma mais eficiente?

Então vamos brincar de amarelinha. De preferência da cor vermelha que enfeita o céu da boca, da boca do inferno: o nosso, que quando erramos a jogada, diante das intempéries do nosso dia a dia, sem perdão, somos condenados a recomeçar do poço a que nos submetemos para não perdermos o jogo, o jogo da sobrevivência.

Nesta brincadeira, céu e inferno confundem-se, iludindo-nos com seus aspectos nebulosos, dentro dos quais mergulhamos nossas confianças, equilibrando nossa sorte nos pratos injustos da balança aferida por animais travestidos de togas umedecidas nos cios antecipados das virgens condenadas ao abate, mas um abate que não mata, não mata a fome do homem, dos homens que tinham nas mãos o poder, devendo defender os que estavam sob suas guardas, mas usavam-no como estatuto para satisfazerem os seus desejos, gozando, cada qual ao seu modo, nas casas de uma brincadeira infantil machucada com as armas da virilidade de quem se pretende macho!

Os homens desta brincadeira deixaram marcas em suas presas, fortalecendo nelas as naturezas femininas, possibilitando-as, elas mesmas, os seus partos, subtraindo-se do céu para o inferno: realidade que suplica esclarecimento; e elas, cada uma dentro do seu papel, mostram como vieram e pra que!

Judith e Dora estão para o bicho que pega; outro que come. Cada uma trilhou o seu caminho, o desfecho coube a elas esboçarem. Enquanto uma rascunhava, outra ensaiava no palco da vida, o que Nilzona, prospecto de prostituta, fazia com profissionalismo: promover prazeres numa casa onde acolhia mulheres consumidas pela vida, salvando-as, contrapondo-se a Ana, imagem de amor e conforto que irradia as páginas marcadas por ela.

Laura e Raquel, mãe e filha respectivamente, desafiam os conflitos existentes entre elas com um silêncio mortal que as consome diante da covarde imagem paterna que Aldo insiste em manter para deixar viva uma ilusão.

Isso é apenas um pouco de tudo que pode ser dito sobre Descaminho dos Anjos, sua amarelinha, seu céu, seu inferno, seus jogadores e suas pedras...

Se você é uma mulher que sobrevive como mulher da vida, entre em Descaminhos dos Anjos e encontre ali a sua casa.

Se você é uma mãe meretriz e deixou que sua filha enveredasse pelo mesmo caminho que o seu, jogue em Descaminho dos Anjos e encontre ali a sua condição.

Se você é um homem que paga qualquer preço pelo prazer, pague também por Descaminho dos Anjos e receba ali o seu troco.

Se você é um da Lei e se corrompe, pensando que a Divindade é cega, surrupie um Descaminho dos Anjos. Querendo disfarçar a sua carapuça, compre-o então.

Se você é um religioso, que com uma mão oferece a hóstia e enfia a outra na calcinha da criança, comungue Descaminho dos Anjos e confesse nele os seus pecados.

Se você é um político que faz uso do cargo que ocupa para beneficiar-se de sexo grátis, vote em Descaminho dos Anjos e eleja em cada página sua plataforma de sacanagem.

Se você é uma amiga que cobra caro da outra a quem ajudou, trapaceando-a para vê-la sempre na casa do inferno, faça como a Dora, desfaça como Raquel e se enxergue no espelho que ambas refletem.

O narrador de Descaminho dos Anjos é inconformado. No fluxo de sua consciência vai amargando cada gota já provada daquela realidade escrita por Emília Goulart, que faz de suas obras um relato artístico do cotidiano dentro do qual a mulher está inserida.

Numa época em que à mulher não era dado nenhum crédito, a não ser o de objeto de consumo, o Romance atravessa os caminhos possíveis e impossíveis, concretizando-se, estabelecendo com o leitor um vínculo verdadeiro, pois tudo que está escrito em Descaminho dos Anjos é a mais pura verdade da arte Literária que Emília Goulart propõe com talento.

Se você sente horror a sexo infantil, vá buscar o seu Descaminho dos Anjos. Pegue nele a sua pedra e depois vamos brincar de amarelinha, porque o Bicho-papão não está sobre o telhado nem no céu, muito menos no inferno. Ele está...

Descubra!